terça-feira, 3 de maio de 2011

“Satelite Heart” + “Old England is Dying”

A vida pode se encontrar na encruzilhada de duas crenças muito distintas, que, no entanto, convivem no coração e na mente como a herança de uma sociedade que não se reconhece mais muito claramente.
De um lado do quadro, crescemos para a vida adulta com a crença infantil de que precisamos de alguém que nos cuide, proteja e nos retire da provável enrascada de uma vida adulta independente. O mito do amor romântico tão presente no nosso cotidiano, em histórias, filmes, telejornais,  mantém essa crença viva e tão atraente. Do outro lado da figura, esta mais visível e fácil de ser admitida,  está a pessoa que cresce para ser independente,  culta e bem-sucedida, que não depende do casamento ou da construção de uma família para ser bem realizada e feliz. Essa pessoa não precisa de um salvador, não é uma princesa na torre. Das enrascadas que a vida lhe apresenta ela consegue sair sozinha. Essas duas imagens fazem parte do mesmo quadro, e, enquanto não necessariamente se opõem, elas podem se confrontar nas escolhas que fazemos.
O primeiro lado é o que prevalece, apesar de ficar oculto, bem escondido contra a parede da vida social e atrás do outro lado, mais aceitável hoje. Ele é oculto e predominante, presente nas narrativas que nos encantam. Nossa falta de atenção com essa imagem nos faz cair em armadilhas bem estranhas durante nossa vida.
 
Annie saiu do cinema com lágrimas nos olhos e o coração apertado. Ficara sentada na cadeira até o fim dos créditos e um pouco além. Só levantara quando os responsáveis pela limpeza entraram na sala, recolhendo sacos de pipoca largados no chão e copos gigantes de refrigerante.  A sessão não estava muito cheia, era um dia de semana à tarde, mas um furacão parecia ter passado no cinema. Nela, o tumulto se instalara também, internamente, ameaçando implodir dentro dela e explodir na superfície.  Somente quando a vassoura chegou à sua fileira, Annie tomou coragem de levantar e sair da bolha em que entrara ao início do filme. Geralmente bastante controlada, dona de atitudes tranqüilas e sensatas, ela agora encontrava dificuldade em disfarçar a confusão por que passava.
O fato de passar por um tumulto já era uma novidade. Sua tranqüilidade a fizera aceitar a vida que se impusera, sem força de mudar, por quinze anos. No entanto, não a impedira de sentir o impacto da inércia.
Nesse momento, o céu azul desafiava a previsão do tempo e o fato de estarmos em Londres. Ainda assim, o frio não desmentia o inverno, e Annie apertou a gola do seu casado. Tinha de fazer algo, tomar alguma providência para acalmar seu coração. Ele batia tão rápido que ela temia hiper ventilar. E quem disse que um filme era só um filme? Ela soltou uma risada meio estrangulada e começou a caminhar, tentando controlar as batidas do seu coração e a bagunça na sua cabeça.


Caminhou por um bom tempo sem destino certo, sem olhar para as pessoas ou vitrines por que passava. Até que resolveu sentar-se a uma mesa em um café tranqüilo. Pediu um café e tentou parar um pouco o tumulto.
Desde que voltara a Londres, depois de se separar de Duncan e finalmente deixar Gooleness - my goodness, que nome...!!! - a cidade onde fora viver temporariamente há quinze anos - mais de uma década de uma vida provisória... -, sentia-se como um zumbi. Nada a abalava da imensa tristeza. Ela não dormia bem, trabalhava como um autônomo e tentava entender o que se passara com ela. E com Tucker. E seus emails incríveis. E sua visita a Gooleness. E o envolvimento dos dois. E o vazio que se seguira, o nada inesperado no que ela pensava ser a completude. Mas agora era apenas um vazio no coração. Os dias passavam, e ela não acreditava que algo a tiraria dessa tristeza enorme advinda da incompreensão sobre o que acontecera, mais do que a perda. Afinal, eles não se envolveram por tanto tempo. Mesmo assim a tristeza conseguia ser sufocante. E nela Annie permanecera, até que, finalmente, o dia do abalo sísmico chegara, e tudo por causa de Jenny e Nick Hornby e a crença no amor eterno salvador da pátria.
 Annie saíra de Gooleness - my goodness!!! -, uma cidade perdida no litoral da Inglaterra, com a percepção de que passara a vida esperando que algo, – mais precisamente alguém, – fosse a resposta a sua vida. Essa crença não era consciente, mas um resquício infantil numa vida já adulta. Mais, uma herança perpetrada em seguidas gerações. Para ela, Duncan era uma passagem que se tornara permanente, o trailer de um filme que nunca começara. Quando Tucker, o musico americano apareceu, com sua vida complicada e coração tumultuado, ela vira uma luz no fim do túnel. Mas como esperar luz de uma pessoa que vivia no vazio sem iluminação? Nada disso ela quis saber, à época. Na esperança de uma saída sinalizada da vida que levara, criara um Tucker muito mais interessante do que ele conseguia ser fora dos emails que trocavam e de suas musicas. Ignorara todos os sinais de que algo poderia não ser bem aquilo que esperava.


Na incompreensão de como ele podia ter deixado seu vazio predominar à ligação que eles tiveram, Annie vivera ela mesma num espaço vazio, apesar de toda a sua vida mudar ao seu redor de uma forma muito importante. Ela fora para Londres com a rara indicação de um emprego –- ironicamente,  a mãe de uma das filhas de Tucker conseguira para ela uma colocação -, que, mais raramente ainda, dera certo. Um museu pequeno e pouco importante na cena artística de Londres, mas infinitamente mais interessante que o lugar em que ela trabalhara antes. Após vender sua casa -– ok, sua e de Duncan - – em Gooleness - !!! -, ela conseguira dar entrada em um ultra minúsculo flat em uma área mais afastada da cidade, mas que ela amava. Tão pouco espaço que, no entanto, era todo dela.
Saíra da pequena cidade no litoral já com a noção de que, com Tucker, havia optado por um atalho, uma força exterior que a tirasse da inércia. Um atalho que não era seu, mas de sua mãe, da sua cultura, do seu país. Um atalho inconsciente que se espalhara em suas crenças de forma sutil e ali permanecera, parasita, alimentando-se de suas esperanças, desejos e expectativas. Annie conseguira ver o atalho, mas, mesmo com a mudança, não conseguia deixar de acreditar que ele era a real solução, até que entrara em um cinema para assistir  An education.


Tucker foi para ela o que a alternativa havia sido para Jenny, protagonista do filme: uma saída fácil, maravilhosa, intensa e divertida. Ela não considerava a atração à novidade e à oportunidade de escapar um erro. Nem sempre é fácil se manter fiel ao que se deseja da vida se não se vê claramente o que se quer. E se o caminho não acontece muito facilmente, fica mais complicado identificar se estamos no nosso rumo.  Bom, não existe um sinal que diga, certo, siga em frente, você está no caminho certo... assim, claro, um atalho pode ser muito bem-vindo. Mesmo que não seja a melhor alternativa.
Annie se permitiu sentir pena de si mesma. Mas, agora, apenas por alguns momentos. Sentada no café deserto, conseguiu também sentir, pela primeira vez em algum tempo, alívio. Caíra em uma armadilha, sim – uma  armadilha secular. Criara uma pessoa que não existia fora da sua expectativa. Acreditara no atalho, mas dele se desviara - na verdade, dele fora arrancada, assim como ocorreu com Jenny.
No entanto, apesar do tumulto, ou justamente por ele, conseguia pensar em outras vias de acesso à vida que desejava. Podia, assim, começar a planejar sua história. Finalmente era capaz de reconhecer, e de afirmar para si mesma, que os caminhos que precisava construir não permitiam atalhos.
Jenny havia aproveitado o seu atalho enquanto durou. Conheceu coisas novas, divertiu-se muito e perdeu sua inocência. Bom, ela acabou também com o coração partido. Mas, o mais importante de tudo: a partir disso o caminho que escolheu não representava mais a sua única opção, e sim uma escolha sua. Uma escolha feita não para agradar seus pais, mas destinada a si mesma. Após tudo o que havia vivenciado, ela pode escolher o que realmente queria, com o coração aberto, mesmo que ele no momento houvesse se partido. As suas experiências de vida não eram mais importantes que sua educação; esta, no entanto, não seria a mesma sem o que havia vivido. Experiência e educação não se oponham, em Jenny, mas se uniam para criar a pessoas que ela veio a se tornar.


Annie achava incrível que havia sido necessária a experiência de adolescente de uma jornalista - a Jenny do filme fora baseada na jornalista Lynn Barber, de quem Annie gostava e admirava -, um escritor careca maravilhoso - não era incomum Annie sonhar com Nick Hornby em situações bastante interessantes após ler um livro seu (!!!) - e uma tarde de folga do novo emprego para que ela conseguisse entender os caminhos que havia seguido por quinze anos, e que a deixaram tão insatisfeita a ponto de se agarrar na primeira rota de fuga que aparecera (a primeira em quinze anos; Gooleness não era uma cidade conhecida pelas oportunidades...).
Olhando dessa forma, o quadro não se apresentava tão ruim. Na verdade, olhá-lo sob outro ângulo, com a ajuda de Jenny e Hornby, davam-lhe uma profunda esperança.
Ela pagou o café, que esfriara intocado na xícara, levantou-se e seguiu seu rumo. Os passos que deixavam marcas na neve enlameada do seu caminho eram somente dela.





Nick Hornby, autor inglês, foi o roteirista de An education, concorrente ao Oscar de melhor filme em 2010. O roteiro encontra-se disponível para venda, em português e inglês. Logo após finalizar o roteiro, ele iniciou o livro Juliet, Naked, já traduzido para o português. Nele encontrei uma semelhança de pensamento com a história de Lynn Barber, que deu origem a  An education. Foi quase uma tese, e ela me permitiu superar a imensa tristeza que quase me engoliu após terminar o livro. Assim, quis que Annie, criação em livro, e Jenny, presente no filme, se encontrassem para além da escrita incrível de Hornby, já que elas haviam se encontrado em mim
Vale dizer que este texto foi escrito há "quase exatamente" um ano. Fará um ano amanhã. As coisas acontecem de uma forma muito legal, porque esta é também a última história já escrita que publico aqui, do conjunto de textos criados no ano passado, quando tive a ideia do blog. A partir desta semana, as postagens serão todas inéditas e mais irregulares - não mais toda terça necessariamente. Quando surgir uma história, haverá um post. Vamos torcer...rs.



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